Nascido em 1899, na França, Benjamin Péret foi, e ainda é, considerado um dos nomes mais importantes no âmbito literário e político do séc. XX. Sua notoriedade se faz marcante na construção e consolidação do Movimento Surrealista europeu, ao lado de importantes nomes como André Breton (1896-1966), Louis Aragon (1897-1982), Paul Éluard (1895-1952), entre outros; também teve participação ativa na elaboração e consolidação do Movimento Antropofágico no Brasil; além da fundamental atuação política de caráter trotskista em todos os países em que encontrou refúgio, tal qual a Espanha e o México, até o fim de sua vida.
Oriundo da cidade francesa Rezé, Péret se mostra um aluno pouco interessado na estrutura arcaica e autoritária das instituições escolares em que iniciou sua formação, abandonando os estudos ainda jovem, em 1913; no entanto, sem nunca perder seu interesse pela literatura e artes em geral. O próximo episódio de sua vida não foi menos singular, para dizer o mínimo: o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) definiria para sempre a história do poeta, como descreve Jean Puyade, em seu artigo “Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931)”:
“Péret faz parte da jovem geração que sobreviveu à primeira maior carnificina dos tempos modernos, após sofrer na própria carne o autoritarismo obtuso do exército francês, no qual sua mãe obrigou-o a se alistar na véspera da guerra. O abalo moral provocado em Péret, bem como em outros de sua geração, pelo que consideram ser a manifestação da falência moral e histórica da ordem ocidental, desencadeará nele uma revolta absoluta, que guardará intacta até o fim de sua vida, com uma capacidade especial de renúncia e de denúncia.”
Passado o período em que serviu ao exército francês, Benjamin aderiu ao Movimento Dadaísta que ganhava cada vez mais espaço no meio artístico e intelectual francês da época, cujas ideias se voltavam à total ruptura com as estruturas estéticas, filosóficas e hierárquicas vigentes. O Movimento Dadaísta nasceu em resposta às atrocidades vivenciadas durante o período de guerras, bem como a própria falta de lógica e qualquer tipo de compreensão moral do homem diante de seus semelhantes. Vale ressaltar que o desejo de unir a ação e a palavra, de modo a romper com as tradições arcaicas da estética artística, bem como da maneira de reproduzir a realidade – já tão desgastada diante da total desestruturação promovida pelo panorama político e bélico mundial – caracteriza fundamentalmente a perspectiva de Benjamin Péret. É já neste meio artístico e intelectual que Benjamin desenvolverá sua formação política e literária, caminhando ao encontro do ideário socialista que aflui pelos círculos jovens de estudantes, artistas e futuros revolucionários da Europa. O emprego dos métodos propositalmente incompreensíveis ao público, no entanto, além do gênero de negação cega e niilista do Dadá não cativaram todo o poeta. No ano de 1922 abandona o projeto e publica, na revista “Littérature”, o texto intitulado “À travers mes yeux”, em que expõe abertamente suas críticas ao Movimento Dadaísta e o caráter o qual assumiu após os principais eventos do início do século:
“Dadá morreu, Dadá morreu, Dadá morreu.
Dadá se propunha a destruir, mas ele próprio se desagregou antes que sua ação se fizesse sentir.
[…]
Abandono os óculos Dadá e, pronto para ir embora, olho de onde vem o vento sem me preocupar em saber o que será nem onde levará.
Amanhã, estarei ainda pronto a pegar carona no carro de meu vizinho, caso ele se disponha a tomar uma outra direção do que a minha.”
É neste ínterim juntamente com Breton, Philippe Soupault, Éluard e Aragon, que Benjamin Péret dá início ao consagrado Movimento Surrealista. “La Révolution Surréaliste”, revista fundada em 1924, contou com a participação de Péret, ao lado de Pierre Naville (1903-1993), nos primeiros números publicados. O periódico constituía-se não somente de publicações acerca de manifestos surrealistas e artigos voltados ao tema, mas também expunha os trabalhos plásticos de Man Ray (1890-1976), André Masson (1896-1987), Max Ernst (1891-1976), entre outros. É inegável a importância que “La Révolution Surréaliste” teve na edificação do surrealismo no cenário mundial, seu caráter contestatório e sempre alinhado com as diretrizes ideológicas de uma esquerda comunista em embate direto com o fascismo latente das potências europeias. A revista é, antes de tudo, um amplo desenvolvimento dos pensamentos outrora expostos por André Breton, em seu Manifesto Surrealista.
Em 1927, Péret casa-se com sua primeira esposa, Elsie Houston (1902-1943), uma cantora lírica brasileira de evidente talento e destaque nos âmbitos boêmios internacionais. Juntos, o casal parte para o Brasil no ano de 1929, onde Benjamin encontra campo fértil para dar vazão às suas perspectivas políticas, uma vez que o Movimento Antropofágico já havia se estabelecido anos antes, através das produções dos artistas da Primeira Geração Modernista. Também é válido ressaltar que as pesquisas de Elsie acerca das canções populares brasileiras, de origem africana e indígena, sob a influência de Mário de Andrade (1893-1945) e Heitor Villa-Lobos (1887-1958), foram de suma importância para o desenvolvimento de seus interesses pelas artes e pensamentos primitivos; resultando na viagem ao Brasil, que se concretizará em fevereiro de 1929. Péret expõe as perspectivas da arte surrealista ao público intelectual brasileiro em uma publicação no Correio da Manhã, onde afirma:
“O surrealismo não é nem o supra-realismo como é corrente denominá-lo aqui, nem um realismo mais acusado, como aquele de Zola. É um realismo espiritual que não admite a separação do valor moral da personalidade individual.”
O autor destaca também a importância das concepções freudianas acerca do inconsciente para a formação do surrealismo, em que este:
“Repousa sobre a crença numa realidade superior de certas formas de associações até então negligenciadas, na onipotência dos sonhos, no jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar definitivamente todos os mecanismos psíquicos e a substituí-los na resolução dos principais problemas da vida.”
Durante sua estadia na cidade de São Paulo, expõe seus conceitos artísticos na icônica conferência “O espírito moderno: do simbolismo ao surrealismo”, realizada no salão vermelho do Hotel Esplanada, cuja exposição se consolida na diferenciação entre os simbolistas de outrora – o que inclui Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Paul Valéry (1871-1945) – e os surrealistas contemporâneos ao autor, bem como suas particulares concepções sobre a produção artística de tais figuras. Péret ainda frisa a inegável contribuição de Guillaume Apollinaire (1880-1918) e do cubismo para o desenvolvimento do movimento artístico que encabeça.
Os modernistas, por sua vez, não pouparam reconhecimentos a Benjamin e sua significativa contribuição para o meio das artes, em uma publicação na Revista Antropofágica:
“Não nos esqueçamos que o surrealismo é um dos melhores movimentos pré-antropofágicos. A liberação do homem como tal, através do ditado do inconsciente e de turbulentas manifestações pessoais, foi sem dúvida, um dos mais empolgantes espetáculos para qualquer coração de antropófago que nestes últimos anos tenha acompanhado o desespero do civilizado. […]. Nunca antes soprara tão alto o desespero final dos cristianizados.
Depois do surrealismo, só a antropofagia.
Benjamin Péret […] é um antropófago que merece cauins de cacique.”
É válido ressaltar que, neste ínterim, a Revista Antropofágica voltava-se a um caráter mais politizado, evoluindo das tendências unicamente estéticas, as quais guiaram os modernistas no início dos anos 20. Agora, todavia, Oswald de Andrade passa a utilizar de seu apelo artístico e político de modo a denunciar as manifestações artísticas que se limitavam exclusivamente às exposições da realidade nativista brasileira, sem o desenvolvimento de qualquer crítica. Tal diferenciação ocorre sob fundamental influência de Benjamin Péret, como relata Benedito Nunes acerca deste momento de cisão:
“[…] considerando que o alvo dos tiros era a sociedade, a moral convencional, o casamento monogâmico, a dominação política da Igreja, a desigualdade social, podemos afirmar que o emprego das armas utilizadas tinha muito mais do calor revolucionário surrealista do que da confusão dadaísta que não queria dizer nada e que não queria fazer nada.”
Embora Péret tenha encontrado abrigo dentro do grupo antropofágico, encabeçado a essa altura por Oswald de Andrade, Pagu e Raul Bopp, seus posicionamentos não deixaram de expor as incongruências ideológicas confusas presentes no próprio movimento. Um de seus embates foi contra a figura do conde Keyserling, exaltado pelos demais modernistas do núcleo de Oswald, chegando a comparar sua importância simbólica e artística à exposição de Tarsila do Amaral no Rio de Janeiro. Benjamin, por outro lado, expõe sua contundente crítica a Keyserling e suas posições metafísicas e confucionistas, em seu artigo “Keyserling, filósofo reacionário? — resposta à sua conferência”. O artigo, contudo, não chega a ser publicado na imprensa paulistana, por conta – muito provavelmente – do tom marcadamente comunista de suas críticas.
Não demora muito até o grupo modernista se desfazer, no ano de 1930. Apesar disso, Péret em nenhum momento mostra qualquer sinal de abdicação de sua busca artística, tampouco militante que, para ele, eram ambas indissociáveis. Aproveitando-se da tendência literária, advinda das concepções futuristas russas que emergiram com toda a força após a Revolução de Outubro, em que a vida pessoal do autor não mais se relaciona necessariamente com suas produções, além do tratamento minucioso da própria língua e visão da arte como elemento fundamental de propagação dos ideais revolucionários, o surrealista e seus camaradas se viram livres para seguir adiante com sua luta por uma arte capaz de integrar os elementos de uma poética inovadora e social.
Entretanto, na terceira década do séc. XX é marcada pelo sufocamento desta busca por uma arte integrante dos movimentos sociais e sua evolução estética, a qual seria responsável por ultrapassar o abismo que dividia até então as massas das manifestações do meio intelectual e sectário. De um lado, a arte burguesa se impunha sobre os países de economia atrasada da América Latina, submetidos a governos de caráter imperialista, em especial, à cultura norte-americana; de outro, a inócua concepção de arte, o realismo soviético, que visava aniquilar as produções artísticas divergentes da finalidade propagandística do regime stalinista.
Apesar da crescente opressão exercida pelo Estado Varguista, que iniciou uma verdadeira caçada à oposição comunista, Péret não se mostra menos interessado nos temas políticos que afluem no período; em especial no evento que ficou conhecido mais tarde como “Revolta da Chibata” (1910), em que marinheiros negros, liderados por João Cândido (1880-1969), realizam um motim contra os abusos físicos infringidos pelos oficiais brancos, os quais valiam-se das chibatas como método punitivo em suas sentenças arbitrárias e cruéis. Acerca do tema, Benjamin Péret escreve em seu livro “O almirante negro”:
“O assunto não é apenas político e polêmico: é também perigoso. João Cândido, cognominado de Almirante Negro, é um dos nomes proibidos até hoje na marinha brasileira que se sentiu desprestigiada pelo fato de um simples marinheiro negro ter assumido o comando da esquadra brasileira récem-chegada da Inglaterra, quando a sua oficialidade ainda estava aprendendo com os oficiais ingleses como manejá-la.”
Vale lembrar, também, a significativa contribuição do poeta no estudo antropológico das lendas e mitos dos povos indígenas brasileiros, em sua “Antologia de mitos, lendas e contos populares na América”, que só será publicada, porém, após a sua morte, em 1960. A obra se vale do acervo tradicional coletado de sua segunda viagem ao Brasil, entre os anos de 1955 e 1956.
O interesse de Péret pelas questões do Brasil não para por aí. Em 1956, ele escreveu um importante ensaio sobre o Quilombo de Palmares. O francês é um dos primeiros a se debruçar sobre o assunto. Seu esforço por fazer uma análise marxista do fenômeno é uma das maiores contribuições que o poeta e historiador poderiam dar para a história e a luta do povo brasileiro.
É diante deste cenário que, acompanhado de Mário Pedrosa (1900-1981), Lívio Xavier (1900-1988) e Aristides Lobo (1905-1968), o poeta funda a Liga Comunista, aliada à Oposição Internacional de Esquerda. O primeiro contato de Péret com Mário Pedrosa se dá em 1928, quando Pedrosa – em viagem a Moscou, contudo, interrompida no meio do caminho por problemas de saúde – estava em Berlim. Neste momento, ambas as figuras se deparam com a frustração e perspectiva de declínio do Partido Comunista Russo, sob o comando de Stálin, e encontram na Oposição Internacional de Esquerda, dirigida por Leon Trotski, a diretriz necessária de atuação política comunista.
Em dezembro de 1931, em um decreto assinado por Getúlio Vargas, é declarada a expulsão de Benjamin Péret do território brasileiro, sob a alegação de que o poeta “[…] se tem constituído elemento nocivo à tranquilidade pública e à ordem social […]”, como consta nos próprios autos publicados na época.
Péret retorna para a França, nunca cessando suas produções artísticas, tampouco sua participação política ativa nas frentes comunistas trotskistas. Com o advento da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o poeta, assim como outros artistas e figuras emblemáticas no meio político, toma parte na guerra em favor dos republicanos – estes defensores da Segunda República Espanhola, orientados pelos ideais comunistas e progressistas. No ano de 1942, Benjamin parte para o México, após a tomada da capital francesa pelas tropas nazistas, onde permaneceu até 1947. É neste momento que Péret se aproxima definitivamente do grupo revolucionário trotskista e seus simpatizantes, bem como do projeto que visava a construção de uma arte propriamente revolucionária – distante dos interesses capitalistas e do stalinismo, por outro lado -, que nasce da parceria de Leon Trotski e André Breton, denominado “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, publicado poucos anos antes, em 1938. É nítida a contribuição do poeta para o projeto, tendo em vista suas influências surrealistas, originadas da onda futurista russa que ganhou espaço entre os artistas de acordo com a revolução socialista mundial.
O autor faleceu em setembro de 1959, deixando não apenas um rico legado artístico, como um dos principais expoentes do surrealismo, mas se concretiza como um dos maiores exemplos de artistas propriamente revolucionários, cuja arte se constitui da unção plena entre a arte e seu papel político; visando alcançar a liberdade de criação, bem como a propagação dos ideais comunistas através das gerações.